JUSTIÇA MILITAR E GARANTIA DA LEI DA ORDEM (GLO): EMPREGO CONTRA CIVIS POBRES
Palavras-chave:
Justiça Militar, Colonialismo, Subalternidade, GLO, Garantia da lei e da ordem, Resistência e DesacatoResumo
Os militares exercem forte influência na vida política brasileira desde a Proclamação da República, em 1889. A Justiça Militar, que deveria julgar exclusivamente militares em tempo de paz, ao longo da História do Brasil tem sido empregada para condenar civis, inclusive por razões de perseguição política, a exemplo do que ocorreu nas ditaduras brasileiras (1937-1945 e 1964-1985). Nos últimos anos tem sido constatada a condenação de civis moradores de comunidades faveladas do Rio de Janeiro por parte da Justiça Militar, em razão de alegada prática de crimes de desobediência e desacato no curso de operações de garantia da lei e da ordem. O objetivo deste artigo é analisar o processamento de civis (na maioria pobres, negros e favelados no Rio de Janeiro), por parte da Justiça militar, em operações de cumprimento da Lei e da Ordem, por enquadramento nos crimes de desobediência e desacato praticados contra militares. A investigação ocorreu por meio de análise qualitativa de acórdãos do Superior Tribunal Militar, entre os anos de 2011 a 2019, relativos a condenações por desobediência e desacato, no curso de operações de Garantia da Lei e da Ordem empregadas contra moradores de comunidades faveladas do Rio de Janeiro, que se insurgiram contra a atuação policial das Forças Armadas. Abstract The military has had a strong influence on Brazilian political life since the proclamation of the Republic in 1889. Military Justice, which should judge exclusively military personnel in peacetime, throughout Brazil's history has been used to condemn civilians, including for reasons of political persecution, which had happened in the Brazilian dictatorships (1937-1945 e 1964-1985). In recent years there has been the condemnation of civilians, residents of favela communities in Rio de Janeiro, by the Military Justice as result of alleged crimes of disobedience and contempt in the course of law and order guarantee operations. The purpose of this article is to analyze the prosecution by the military justice of civilians (mostly poor, black and slum dwellers in Rio de Janeiro), in the course of law and order compliance operations, for framing the crimes of disobedience and contempt practiced against military people. The investigation took place through qualitative analysis of trials at the Superior Military Court, between the years 2011 to 2019, which resulted in condemnations for disobedience and contempt, during operations for Guarantee of Law and Order used against residents of slum communities in Rio de Janeiro, who rose up against the armed forces' police action. Keywords: Military Justice. Colonialism. Subalternity. GLO. Guarantee of law and order. Resistance and contempt.Downloads
Referências
Referências bibliográficas:
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Notas:
[1]Doutor em ciência política (IUPERJ), com pós-doutorado (CPDA/UFRRJ), mestre em Direito (UFRJ). Diretor e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Autor dos livros: Terras indígenas: a indiferença dos Tribunais do Brasil; Constituição rasgada: anatomia do golpe; Intervenção judicial; Do conflito ao equilíbrio: política, judiciário e audiências públicas; O poder judiciário nas ditaduras brasileiras e Empresas públicas e o desenvolvimento sustentável: um Brasil dos brasileiros.
[2]Neto, 2019, p. 29: “Lutar pelo ‘interesse nacional’ separadamente do ‘interesse social’ é uma manobra para imprimir respeitabilidade aos desígnios dos que detêm ou querem deter a hegemonia no Estado, entre os quais se destaca o estamento militar. Este procedimento lastreia o ‘nacionalismo corporativo’, que estou designando como patriotismo castrense.”
[3]Passarinho, 2008: “Mas, às favas, senhor presidente, neste momento, todos, todos os escrúpulos de consciência.”
[4]Exposição de motivos do Ato Institucional n. 1, de 01/04/1964: “A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação.” (BRASIL, 1964)
[5]Exposição de motivos do Ato Institucional n. 1, de 01/04/1964 “...tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas.” (BRASIL, 1964):
[6]Rosenfield (2020): “Militares procuraram Temer para reclamar de Dilma e PT antes do impeachment.”
[7]“Artigo: 299. Desacatar militar no exercício de função de natureza militar ou em razão dela:
Pena: detenção, de seis meses a dois anos, se o fato não constitui outro crime.”
[8]“Artigo 301: Desobedecer a ordem legal de autoridade militar.
Pena: detenção até seis meses.”
[9]Souza e Silva (2016) registram que “a partir de 1824, após a polêmica repressão à Confederação do Equador, sem uma definição precisa do foro militar, quando necessário, os Conselhos de Guerra poderiam ser usados na repressão a movimentos populares, punindo também civis. Como tribunal de exceção, a Comissão Militar era um dispositivo acionado para dar ares de julgamento à ação do Estado na repressão a movimentos contestatórios.”
[10]Souza e Silva (2016): “A justiça militar não passaria ilesa à turbulência política da década de 1930. Em novembro de 1931, o Governo Provisório baixou decreto (20.656, de 14/11/1931) determinando o processo e julgamento pela justiça militar de militares, assemelhados ou civis que tomassem parte por qualquer forma nos atentados contra a ordem pública ou contra os governos da União e dos estados.”
[11]Folena de Oliveira (2016, p. 139): “O Tribunal foi constituído primordialmente como um órgão da Justiça Militar e tinha como objetivo atuar ‘sempre que for decretado o estado de guerra’, como previsto no artigo primeiro da referida lei (Lei 244, de 11/09/1936) Porém ao referido tribunal foi atribuída também a competência para julgar e processar os civis em curso nos delitos previstos na Lei n. 38, de 1935 (a Lei de Segurança Nacional)”.
[12]Teixeira da Silva (2015): “Os comunistas são os primeiros inimigos do Estado”.
[13]Teixeira da Silva (2020): “Os Militares jamais tiveram qualquer adesão real, completa e leal à Nova República e à Constituição de 1988. A expressão Nova República foi cunhada a partir de um discurso de Tancredo Neves, em Vitória (ES), em 1984, quando afirmou: ‘É imperioso criar uma Nova República, forte e soberana, para que nossas Forças Armadas não sejam nunca desviadas de sua destinação constitucional’.”
[14]Teixeira da Silva (2020): “Os Militares, na verdade, durante os anos de Nova República, souberam se preparar para a eventualidade de uma crise política, quando seriam chamados de volta ao Poder no papel de ‘salvadores’. Mesmo derrotados em 1985-1988, impuseram à Constituinte institutos de poder militar, como o atual Artigo 142 (sobre a GLO), capazes de tornar seu papel de tutela sobre a República indispensável e mesmo automático.”
[15]Mello (2013): “Tendência que se registra, modernamente, em sistemas normativos estrangeiros, no sentido de extinção (pura e simples) dos tribunais militares em tempo de paz, ou então, da exclusão de civis da jurisdição penal milita: Portugal (Constituição de 1976, art. 213, Quarta Revisão Constitucional de 1997), Argentina (Ley Federal n. 26.394/20080, Colômbia (Constituição de 1991, art. 213), Paraguai (Constituição de 1967, art. 253, c/c Ley 18.650/2010, arts. 27 e 28), v.g.”
[16]Folena de Oliveira (2018).
[17]STM, processos números 0079-37.2011.7.01.0201, 0264-88.2014.7.01.0201, 0170-43.2014.7.01.0201, 0229-31.2014.7.01.0201, 0142-75.2014.7.01.0201, 0229-31.2014.7.01.0201, 0193-37.2014.7.01.0201, 0086-56.2015.7.01.0201, 0108-75.2015.7.01.0201.
[18]BRASIL, 2016.
[19]Fanon, 2008, p. 34: “No Exército colonial, e especialmente nos regimentos senegaleses de infantaria, os oficiais nativos são, antes de mais nada, intérpretes. Servem para transmitir as ordens do senhor aos seus congêneres, desfrutando por isso de uma certa honorabilidade.”
[20] Gramsci, 2014, p. 135: “A história dos grupos sociais subalternos é necessariamente desagregada e episódica. (...) Os grupos subalternos sofrem sempre a iniciativa dos grupos dominantes, mesmo quando se rebelam e se insurgem: só a vitória ‘permanente’ rompe, e não imediatamente, a subordinação”.
[21]Folena de Oliveira (2017): “Fazer GLO para intervir em favelas é abusar das FFAA (Forças Armadas), que têm a missão de defender a Pátria, e não fazer papel de polícia.”
[22]BRASIL (2013). STF, 1a Turma, Habeas Corpus número 113.128-RJ, relator Ministro Roberto Barroso, julgado em 10/12/2013: “Compete à Justiça Militar processar e julgar civil acusado de desacato e desobediência praticados contra militar das Forças Armadas no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública (art. 9º, III, d, C.P.M).”
[23]STM, processo número 0000264-88.2014.7.01.0201, relator Ministro Gen. Ex. Marco Antônio de Farias.
[24]Carvalho, 2018.