A HIPERVULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR SUPERENDIVIDADO NA SOCIEDADE DE CONSUMO BRASILEIRA
Palavras-chave:
Consumidor hipervulnerável, Superendividamento, Sociedade de consumo, Educação financeira comportamentalResumo
Resumo A sociedade de consumo brasileira enfrenta enormes desafios ao se defrontar com o superendividamento. A Lei nº 14.181/2021 alterou o Código de Defesa do Consumidor apresentando medidas de tratamento e a prevenção do superendividamento, vislumbrando uma mudança da cultura da inadimplência e da exclusão social, para a cultura da negociação das dívidas, do pagamento, e da reinserção do consumidor no ciclo econômico do consumo ativo. O artigo contextualiza o tema, aborda o conceito de consumidor superendividado, e debate a vulnerabilidade agravada situacional deste sujeito, destacando as consequências financeiras, sociais e psicológicas dessa condição, bem como o assédio na concessão de crédito que contribui para o agravamento do problema. São apresentadas reflexões sobre as medidas de proteção ao superendividado, com evidência para a fase conciliatória e preventiva do processo de repactuação de dívidas realizada pelos PROCONS, e o fomento de ações direcionadas à educação financeira do consumidor, com foco no letramento financeiro comportamental para a mitigação desta mazela. Abstract Brazilian consumer society faces enormous challenges when faced with over-indebtedness. Law 14.181/2021 amended the Consumer Protection Code, introducing measures to treat and prevent over-indebtedness, envisioning a shift from a culture of default and social exclusion to a culture of debt negotiation, payment, and reinsertion of the consumer into the economic cycle of active consumption. The article contextualizes the topic, addresses the concept of over-indebted consumers, and discusses the aggravated situational vulnerability of this subject, highlighting the financial, social, and psychological consequences of this condition, as well as the harassment in granting credit that contributes to the worsening of the problem. Reflections are presented on measures to protect over-indebted individuals, with evidence for the conciliatory and preventive phase of the debt renegotiation process carried out by PROCONS, and the promotion of actions aimed at consumer financial education, with a focus on behavioral financial literacy to mitigate this scourge.Downloads
Referências
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[1] Advogada. Assessora Jurídica da Presidência do PROCON-RJ e Analista de Proteção e Defesa do Consumidor. Mestranda em Propriedade Intelectual e Inovação no INPI. Especialista em Direito Constitucional, em Direito do Consumidor na Era Digital, e em Direito Regulatório. Conselheira do CNDC. Membro Titular do CDUST, na ANATEL.
[2] “Cumpre destacar que as normas protetivas previstas nos arts. 54-A a 54-G do CDC não se aplicam (i) se as dívidas do consumidor tiverem sido contraídas mediante fraude ou má-fé;(ii) se forem oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento; ou (iii) se decorrerem da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor (§ 3º do art. 54-A).” STJ - AREsp: 2267930, Relator: MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Publicação: 01/03/2023.
[3] Os NAS são unidades especializadas para atendimento e assistência aos consumidores superendividados, e em sua grande maioria, estão instalados e aparelhados nos PROCONS.
[4] A vulnerabilidade pode ser técnica, jurídica, fática ou socioeconômica. Doutrina expoente indica novo tipo de vulnerabilidade na era digital: algorítmica, relacionada à capacidade limitada do consumidor em compreender e controlar as decisões automatizadas realizadas por algoritmos em processos de tomada de decisão relacionados ao consumo. Nas relações digitais, há falta de transparência dos algoritmos e nos critérios utilizados nas escolhas realizadas. Muitas vezes, os consumidores não têm acesso às informações necessárias para entender como as decisões são tomadas e quais os impactos dessas em suas vidas. Isso pode resultar em discriminação algorítmica e em práticas comerciais abusivas.
[5] As causas são diversas e inter-relacionadas. Dentre as principais, e mais recorrentes, citam-se: instabilidade econômica, crises financeiras, desemprego, morte na família, doenças graves, divórcio, ausência de planejamento financeiro, gestão precária do orçamento doméstico, padrão de consumo superior à renda, oferta extremamente facilitada de crédito.
[6] De acordo com os indicadores do Banco Central, divulgados em novembro de 2023, desde 2021, aproximadamente vinte milhões de brasileiros contrataram crédito, provenientes do aumento da bancarização na pandemia, perfazendo o total de 106,2 milhões de consumidores com ao menos uma operação de crédito ativa. A instituição revelou que em março de 2023, havia 15,1 milhões de endividados de risco no Brasil, 14,2% do total da população tomadora de crédito dentro do Sistema Financeiro Nacional. Os endividados de risco estão mais concentrados nas regiões Norte e Nordeste, na população feminina, no público de maior idade e de menor renda.
Importante citar que o Banco Central nos seus estudos utiliza a nomenclatura endividamento de risco. Enquadra nesta qualidade “o tomador de crédito que atende simultaneamente a dois ou mais dos critérios relacionados a seguir: inadimplência, comprometimento da renda mensal com o pagamento de dívidas acima de 50%, exposição simultânea a cheque especial, crédito pessoal sem consignação e crédito rotativo, e renda disponível mensal (após o pagamento de dívidas) abaixo da linha de pobreza.” BANCO CENTRAL. Banco Central atualiza números sobre o endividamento de risco. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/752/noticia, acesso em 12 abr. 2024.
[7] Em relação ao cartão de crédito consignado, o Banco Central informa: “Funciona como um cartão de crédito comum e é usado para o pagamento de produtos e de serviços no comércio. A diferença é que, no cartão de crédito consignado, o valor da fatura pode ser descontado, total ou parcialmente, automaticamente na sua folha de pagamento, limitado ao valor da margem consignável.” BANCO CENTRAL. Empréstimos Consignados. Disponível em https://www.bcb.gov.br/meubc/faqs/p/o-que-e-cartao-de-credito-consignado. Acesso em 14 abr. 2024. Entretanto, há que se ponderar a falta de compreensão acerca dos produtos financeiros ofertados aos consumidores. Infelizmente, é corriqueiro que o consumidor (especialmente o hipervulnerável) contrate o cartão consignado imaginando estar contratando um empréstimo consignado, após ter sido induzido ao erro. Caso a instituição financeira desconte parcialmente o valor da fatura na folha de pagamento ou do benefício previdenciário, e não haja o pagamento da dívida restante, o consumidor arcará com a cobrança dos altíssimos juros do crédito rotativo do cartão.
[8] O GLOBO. Empréstimo consignado: bancos concedem crédito que o cliente sequer pediu. 13/08/2023. Disponível em https://oglobo.globo.com/economia/defesa-do-consumidor/noticia/2023/08/13/emprestimo-consignado-bancos-concedem-credito-que-o-cliente-sequer-pediu.ghtml . Acesso em 14 abr. 2024.
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[9] A plataforma Consumidor.gov.br é um serviço público e gratuito que permite a comunicação direta entre consumidores e empresas cadastradas voluntariamente (em abril de 2024 eram 1419 fornecedores), para a solução de conflitos de consumo, via internet. Atualmente, 78% das reclamações registradas na plataforma são solucionadas pelas empresas, que respondem às demandas dos consumidores em um prazo médio de 6 dias.
[10] SENACON. MJSP. Boletim Consumidor.gov.br 2023. Disponível em https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/11.03.2024PDFBoletimConsumidor.gov.br2023_final_compressed3.pdf . Acesso em 13.abr.2024. Acesso em 14 abr. 2024.
[11] O Brasil aderiu em 2021 à Recomendação OCDE/LEGAL/0453, que dispõe sobre a proteção do consumidor no domínio do Crédito. Em síntese, além de incentivar a promoção da educação e conscientização financeira, e a conduta empresarial responsável na oferta e concessão de crédito, a Recomendação indica que os países aderentes adotem medidas com o objetivo de garantir tratamento equitativo e justo aos consumidores, proteção de seus dados pessoais, e informações adequadas no fornecimento de crédito.
[12] BANCO CENTRAL. BC aplica pesquisa da OCDE sobre conhecimentos e hábitos financeiros dos brasileiros. 02/02/2023. Disponível em https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/662/noticia . Acesso em 14 abr. 2024.
[13] Para a elaboração do Relatório, foi aplicada uma pesquisa quantitativa estruturada, elaborada a partir de uma adaptação da metodologia Toolkit OCDE/INFE para o contexto nacional. Nesta pesquisa, o letramento foi calculado considerando três dimensões: comportamento financeiro, atitude (ou postura) ao fazer escolhas financeiras e conhecimento sobre finanças. É possível consultar o documento no site https://www.bcb.gov.br/content/cidadaniafinanceira/documentos_cidadania/letramento/relatorio-de-letramento-financeiro.pdf . Acesso em 14 abr. 2024.
[14] Bem-estar financeiro é estado em que o indivíduo consegue cumprir com suas necessidades financeiras, lidar com choques financeiros e, ao mesmo tempo, ser capaz de se planejar e de conquistar sonhos.
[15] Deve-se refletir que as decisões financeiras dos consumidores são influenciadas não apenas por fatores econômicos, mas também por aspectos psicológicos e sociais.