O PROCESSO CONSTITUINTE DE 1987/88 E A LEITURA INTERCULTURAL DA CONSTITUIÇÃO
Palavras-chave:
PROCESSO CONSTITUINTE DE 1987/88, LEITURA INTERCULTURAL DA CONSTITUIÇÃOResumo
Ao revisitar o processo de elaboração da Constituição de 1988, a importância da mobilização dos povos indígenas e de seus aliados em favor de um tratamento jurídico singular aos seus territórios contrapunha-se à atuação de forças conservadoras para impedir a sua concretização. As disputas interpretativas seguiram após a promulgação do texto, e a oposição aos direitos territoriais indígenas cresceu, com novos adversários e empecilhos à superação do regime tutelar. Como consequência, a leitura da Constituição permaneceu voltada para o retrovisor, mediante a utilização de regimes jurídicos pretéritos ou marcadamente ocidentais para orientar a interpretação constitucional. O desafio é assegurar uma leitura intercultural do texto, que procure enfrentar as colonialidades existentes na sociedade brasileira e esteja verdadeiramente aberta aos anseios dos povos indígenas.
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Referências
Referências bibliográficas
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Notas de Rodapé:
[1] Procurador da República, mestre em direito público pela UERJ. Coordenador do Grupo Trabalho Povos Indígenas e Regime Militar e membro do Grupo de Trabalho Demarcação de Terras Indígenas, ambos da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal.
[2] NORA, Pierre. Entre memória e história: A problemática dos lugares. Tradução de Yara Aun Khoury. Proj. História, São Paulo, 10, jul/dez, 1993, p. 07-28.
[3] OLIVEIRA, João Pacheco de. As mortes do indígena no império do Brasil: o indianismo, a formação da nacionalidade e seus esquecimentos. In: ______. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2016, p. 75-116.
[4] Ibid., p. 7-44.
[5] Em seus relatos de viagem, a atenção de Colombo está voltada à falta de vestimentas, o que seria, segundo Todorov, um sinal da falta de propriedades culturais, o que os associaria ao paraíso bíblico, pois os homens só teriam passado a vestir-se após a expulsão do paraíso, quando a identidade cultural se inicia. Cf. TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. Tradução de Beatriz Perrone Moi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, p. 20. Veja-se também: HOLANDA, Sérgio Buarque. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. 3ª reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
[6] O regimento contém orientações distintas quanto aos tratamentos a serem dispensados aos Tupinambás, tidos como inimigos, e aos Tupiniquins, vistos como aliados. Os primeiros devem ter suas aldeias e povoações destrtruídas e uma parte deve ser morta ou escravizada para dar exemplo e castigo a todos. Já os Tupiniquins, que são inimigos dos Tupinambás, devem receber auxílio e até terras: “e alguns dos ditos gentios quiserem ficar na terra da dita Bahia, dar-lhe-eis terra para sua vivenda, de que sejam contentes, como vos bem parecer”. Disponível em: <http://lemad.fflch.usp.br/sites/lemad.fflch.usp.br/files/1.3._Regimento_que_levou_Tom__de_Souza_0.pdf> Acesso em 06 ago. 2017.
[7] Cf. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 49ª ed. São Paulo: Cultrix, 2013, p. 96-97.
[8] A recorrência do tema da “morte” dos indígenas simbolizava a inexistência ou insignificância contemporânea, podendo ser tratada de forma gloriosa, como na poesia de Gonçalves Dias, trágica, conforme “O Guarani”, de José de Alencar, ou vegetal, como adaptação simbiótica para a construção de um ser novo, como ocorre em “Iracema”, de José de Alencar”. Os seguintes trechos do poema “I-Juca Pirama” demonstram a perspectiva lírica do nativismo de Gonçalves Dias: “Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi: / Sou filho das selvas,/ Nas selvas cresci;/ Guerreiros, descendo/ Da tribo tupi. / Da tribo pujante,/ Que agora anda errante/ Por fado inconstante,/ Guerreiros, nasci;/ Sou bravo, sou forte,/ Sou filho do Norte; Meu canto de morte,/ Guerreiros, ouvi”. A própria expressão “Juca Pirama” significa, em tupi, “aquele que vai morrer”. Sobre a influência do romantismo indianista na construção da imagem do indígena no Brasil, veja-se: OLIVEIRA, João Pacheco de. As mortes do indígena no império do Brasil: O Indianismo, a formação da Nacionalidade e seus esquecimentos. In: _______. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2016.
[9] A designação de lugares, grupos políticos e periódicos passa a remeter a nomes indígenas. Como exemplo, pode-se citar a cidade de Niterói, antes Praia Grande, que ganha este nome de origem tupi (“água que se esconde”) em 1834. Outro exemplo é o jornal produzido por José Bonifácio de Andrada e Silva durante os debates da constituinte de 1823, que se chamava “O Tamoio”. Nesse sentido, veja-se: SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: Indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012, p. 42.
[10] Este conceito foi cunhado por Boaventura de Sousa Santos para mostrar como aquilo que aparentemente não existe corresponde, em verdade, a algo que é ativamente produzido como não existente. Isso ajuda a entender as formas como o direito orienta e ordena as relações sociais.O sociólogo português aponta cinco lógicas que compreendem a não ausência: o ignorante, o atrasado, o inferior, o local ou particular e o improdutivo ou estéril. O ignorante é fruto da monocultura do saber, em que a ciência moderna e a alta cultura são critérios únicos de verdade e de qualidade estética, de modo que aquilo que não é reconhecido ou legitimado pelo cânon é declarado inexistente. O atrasado liga-se à monocultura do tempo linear, segundo a qual a história tem sentido e direção únicos e conhecidos, rumo ao progresso e à modernização. Assim, é atrasado tudo aquilo que se mostra assimétrico em relação a este avanço. A inferioridade relaciona-se à lógica da classificação social, mediante a naturalização das diferenças, já mencionada, em que a relação de dominação é consequência e não a causa da hierarquia social. Só importa o que é universal e global, com precedência sobre todas as outras realidades que dependem de contextos e que, por isso, são consideradas particulares. O improdutivo atende à monocultura dos critérios de produtividade capitalista, logo aquilo que não maximiza a geração de lucro – seja oriundo da natureza, seja oriundo do trabalho humano – não existe. No caso do trabalho, há improdutividade; no caso da natureza, esterilidade. Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologías del Sur. Revista Utopía y Praxis Latinoamericana, Año 16, n. 54, jul/set, 2011, p. 32-34.
[11] Em linhas gerais, pode-se dizer que a colonialidade do poder consiste em um padrão de poder, gerado pela colonização, que naturalizou as diferenças e permitiu a distinção entre pessoas com base na ideia de raça. A colonialidade do ser importa a inferiorização de certos seres humanos, como negros e indígenas, ao passo que a colonialidade do saber pressupõe a superioridade da forma eurocêntrica de compreender o mundo. QUIJANO, Aníbal. “Colonialidad del poder, eurocentrismo y America Latina”. In: LANDER, Edgardo (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: Clacso, 2000.
[12] A reivindicação de identidades negadas é uma parte fundamental da descolonização do ser, ancorada na não indiferença, e a descolonialidade é a prática na qual todos os grupos buscam relacionar-se de forma não condescendente entre si e militantemente em favor dos mais marginalizados, despossuídos e desumanizados na busca por justiça e “vivir bien”. TORRES, Nelson Maldonado. Del mito de la democracia racial y el mestizaje a la descolonización del poder, del ser y del conocer. In: SAAVEDRA, José Luis. Teorias y políticas de descolonización y decolonialidad. Cochabamba: Verbo Divino, 2009, p. 206.
[13] Adota-se aqui o conceito de momento constitucional formulado por Bruce Ackerman. Segundo o autor estadunidense, momentos constitucionais são períodos marcados por grande mobilização social e deliberação popular sobre a Constituição e temas constitucionais, que diferenciam-se de momentos de decisões governamentais ordinárias, pois são marcados por debates sérios entre forças opostas, sendo resultado deste processo uma deliberação legítima. Nesse sentido, ver: ACKERMAN, Bruce. We the people 1: foundations. Cambrindge; London; Harvard University Press, 1991, p. 6.
[14] Além de casos já citados, pode-se mencionar o Projeto Grande Carajás, no sul do Pará, destinado à exploração de minérios, que teve como suporte a construção da hidrelétrica de Tucuruí e a estrada de ferro Carjá, impactando o povo Parakanã. Outro exemplo, já mencionado na introdução, é a construção da rodovia Transamazônica, que atingiu o povo Tenharin. Sobre o tema, ver: ARAUJO JUNIOR, Julio José. A rodovia transamazônica e os indígenas Tenharim: ontem e hoje. Artigos da Associação Nacional dos Procuradores da República. 2014. Disponível em <http://www.anpr.org.br/artigo/70> Acesso em 06 out. 2017.
[15] O mesmo fenômeno era observado em sede internacional. Em 1975, realizou-se a primeira conferência internacional dos povos indígenas, no Canadá, que reuniu grupos de 19 países, e em 1977, a primeira conferência internacional de organizações não governamentais acerca dos direitos indígenas. Cf. CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
[16] Nesse sentido, pode-se citar o depoimento de Ailton Krenak: “Ao longo dos séculos de colonização, em diferentes regiões do país, os índios sempre fizeram movimentos de resistência e de organização. Mas uma representação a nível nacional só foi possível agora, no final dos anos 1970, quando esses povos começaram a se encontrar, começaram a ver que tinham problemas comuns e que podiam encaminhar algumas soluções juntos”. COHN, Sérgio (org.). Ailton Krenak. Série Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2015, p. 25.
[17] O projeto da “emancipação” consistia na pretensão da ditadura de “emancipar” de forma coletiva os chamados indígenas “aculturados”. O termo “emancipar” era utilizado com o sentido previsto no Código Civil, ou seja, o de afastar a incapacidade absoluta e o regime tutelar. A “falsa emancipação”, como foi chamada pelos índios e seus apoiadores, baseava-se no art. 9º do Estatuto do Índio, que já autorizava a emancipação aos indivíduos indígenas, mediante a observância de determinados requisitos, como o conhecimento da língua portuguesa ou a habilitação para o exercício. Com o projeto, buscava-se a emancipação de toda a comunidade, regulamentando o art 11 do Estatuto. O problema do projeto não era afastar o regime tutelar, mas sim usar a “emancipação” para negar direitos ou excluir a atuação estatal em favor de certos grupos. Embora aparentemente generosa, a proposta buscava, de fato, excluir a condição indígena de determinado grupo e, por conseguinte, afastar o direito à terra na forma prevista no art. 198 da Constituição, já que esta só eventualmente poderia ser doada à comunidade. Sobre o tema, ver: COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO/SP. A questão da emancipação. Cadernos da Comissão Pró-Índio, v. 1 (São Paulo), ago, 1979; Conselho Indigenista Missionário - CIMI. Outros 500: Construindo uma nova história. São Paulo: Salesiana, 2001, p. 121; CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012, p. 114.
[18] Sobre a luta dos Xocó por suas terras, veja-se a publicação da Comissão Pró-índio de São Paulo: DANTAS, Beatriz Góis; DALLARI, Dalmo de Abreu. Terra dos índios Xocó: estudos e documentos. São Paulo: Editora Parma/Comissão Pró-Índio, 1980.
[19] As assembleias e encontros deram visibilidade a alguns indígenas como novos atores políticos no cenário nacional, substituindo a representação por indigenistas ou sertanistas. No entanto, como observa Oliveira, a atuação como mediador junto ao Estado trazia dificuldades, pois afastava essas lideranças do cotidiano das aldeias e dos processos locais de decisão, ao mesmo tempo que os colocava sob a influência ora do Estado, ora de organizações não governamentais, que acabavam influenciando na pauta do movimento indígena. Cf. OLIVEIRA, João Pacheco de. “Regime tutelar e globalização: um exercício de sociogênese dos atuais movimentos indígenas no Brasil”. In: ______. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2016, p. 277-278.
[20] Segundo a liderança do Rio Negro Álvaro Tukano, o temor dos militares não se confirmava: “Na verdade, ninguém queria formar outros Estados dentro do Estado brasileiro. O que defendemos foi a demarcação das terras indígenas, à luz da Constituição Federal, Lei nº 6001, Estatuto do Índio. Como cidadãos brasileiros, defendemos as culturas e tradições dos povos indígenas que têm suas terras tradicionais. O General não poderia desfazer a Constituição Federal que defende os nossos direitos. Via Funai, o Estado brasileiro tinha que demarcar os territórios das tribos distintas que vivem pelo nosso país e entender que as terras indígenas são os bens da União”. Cf. WERÁ, Kaka (org.). Tembeta: Álvaro Tukano. Rio de Janeiro: Azougue, 2017, p. 94-95.
[21] Os artigos 44 e 45 da Lei nº 6.001/73 tratavam da exploração das riquezas do solo e do subsolo da seguinte forma: Art. 44. As riquezas do solo, nas áreas indígenas, somente pelos silvícolas podem ser exploradas, cabendo-lhes com exclusividade o exercício da garimpagem, faiscação e cata das áreas referidas; Art. 45. A exploração das riquezas do subsolo nas áreas pertencentes aos índios, ou do domínio da União, mas na posse de comunidades indígenas, far-se-á nos termos da legislação vigente, observado o disposto nesta Lei; § 1º O Ministério do Interior, através do órgão competente de assistência aos índios, representará os interesses da União, como proprietária do solo, mas a participação no resultado da exploração, as indenizações e a renda devida pela ocupação do terreno, reverterão em benefício dos índios e constituirão fontes de renda indígena; § 2º Na salvaguarda dos interesses do Patrimônio Indígena e do bem-estar dos silvícolas, a autorização de pesquisa ou lavra, a terceiros, nas posses tribais, estará condicionada a prévio entendimento com o órgão de assistência ao índio.
[22] A medida atendia a interesses de empresas como a Paranapanema, empresa de construção civil que participou da abertura de estradas na Amazônia e que, após a descoberta de cassiterita na região, passou a diversificar suas atividades, realizando a exploração na terra indígena Tenharin, no Amazonas (Cf. BERTOLIN, Gabriel Garcês. Entre outros: uma análise da transformação ritual entre os Kagwahiva. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). 2014. 216 f. Universidade Federal de São Carlos, 2015, p. 55-56). Na década de 1980, ela viria também a explorar o mesmo minério na Terra Indígena Waimiri Atroari, no Amazonas. (Cf. CARVALHO, José Porfirio F. de. Waimiri Atroari: a história que ainda não foi contada. 2ª ed. Brasília, 1982).
[23] A derrota da proposta de emenda constitucional que previa eleições diretas para a Presidência da República (Emenda Dante de Oliveira), na madrugada de 26 de abril de 1984, mostrou o peso das Forças Armadas e da base de apoio político do governo para dar as cartas no jogo sucessório. Cf. SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 484.
[24] Prevaleceu a proposta do governo José Sarney, que preconizava uma Assembleia Constituinte congressual, que cumularia funções com as atividades rotineiras do Parlamento (Cf. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO; Daniel. Direito Constitucional. Teoria, história e métodos de trabalho. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 158). Com esse caráter, a Constituinte apresentava uma imagem de transição sem rupturas, o que era evidenciado pela participação de senadores “biônicos”, nomeados pelo governo militar, nos trabalhos.
[25] FERNANDES, Florestan. A luta popular pela Constituição. In: Que tipo de República. 2ª ed. São Paulo: Globo, 2007, p. 148.
[26] Havia uma notória sub-representação de minorias na Assembleia Constituinte: 26 congressistas mulheres (4,6% do total), 11 constituintes negros (2%) e nenhum indígena. Cf. SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p.p. 161.
[27] O programa mínimo foi elaborado pela União das Nações Indígenas (UNI) com entidades de apoio ao índio, centrais sindicais e associações profissionais e científicas, além de movimentos sociais do campo. Cf. CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 169-170.
[28] O PMDB já não era, à época, um partido com mínima homogeneidade, pois continha em suas fileiras políticos que lutaram pela democracia, como Mário Covas (SP), e viria a abrigar, com a redemocratização e ascensão de José Sarney, dezenas de parlamentares egressos da antiga Arena, partido que sustentara o governo militar. Essa heterogeneidade geraria divisões no debate constituinte, especialmente quanto a temas polêmicos, como reforma agrária e a regulamentação das comunicações. Sobre o PMDB e o seu comportamento, veja-se: NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
[29] “O Estado brasileiro deverá garantir os direitos à continuidade de ocupação e uso destas terras pelas populações indígenas. Aliás, este direito, em que pese a sistemática violação, já está reconhecido na legislação colonial, no Império e nas Constituições republicanas a partir de 1934, faz parte de nosso sistema jurídico. O conceito de terra indígena, na definição de sua extensão, deve ser o conceito de habitat, isto é, a terra indígena é aquela necessária para que o grupo possa não só sobreviver fisicamente, mas, acima de tudo, reproduzir sua cultura. Assim, o território indígena compreende o espaço utilizado para habitar, produzir alimentos, caçar, pescar e desenvolver a coleta de frutos. Urge a regulamentação das terras indígenas quanto à preservação do meio ambiente e à compatibilização com reservas florestais e parques nacionais, estaduais e municipais”. CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 169-170.
[30] Nos termos do art. 89, IV da Constituição de 1969, entre outras atribuições, cabia ao CSN dar, em relação às áreas indispensáveis à segurança nacional, assentimento prévio para concessão de terras, abertura de vias de transporte e instalação de meios de comunicações.
[31] João Pacheco de Oliveira cita os seguintes documentos: Estudo 007/3º SC/86 - “A questão indígena e os riscos para a soberania e integridade do território nacional” e Estudo 029/3ª SC/87. OLIVEIRA, João Pacheco de. Sem a tutela, uma nova moldura de nação. In: ______. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2016, p. 289-316. Em 1986, o governo federal concebeu o projeto Calha Norte, um programa de desenvolvimento e segurança para a região norte do país, com atenção especial à faixa de fronteira. A “exposição de motivos” do projeto continha um diagnóstico sobre a região e defendia a retirada dos indígenas das regiões de faixa de fronteira e a demarcação de terras em ilhas, de forma a evitar uma continuidade territorial e assegurar a plena atuação estatal. O documento relatava ainda a baixa densidade demográfica da região norte e mencionava a presença de índios “em diversos graus de aculturação”, que representavam 0,04% da população do país e 22,7% da população indígena nacional. Buscava-se, como resposta a este quadro, a integração da região ao restante do país, com obras de infraestrutura, o incremento da presença militar, pela instalação de unidades militares, e o estabelecimento de vilas, povoados e cidades. Sobre o programa, veja-se: LOURENÇÃO, Humberto. Concepções de políticas de defesa e desenvolvimento da Amazônia de 1985 a 2006. Revista da Escola Superior de Guerra, v.29, n.59 (ju./dez.), 2014. Rio de Janeiro: ESG, 2014, p. 11-29.
[32] As organizações indígenas chegaram a submeter à Comissão Afonso Arinos uma minuta, na qual reforçavam o caráter inalienável das terras indígenas, o direito à posse permanente pelos índios e o reconhecimento do usufruto exclusivo das riquezas naturais, não só do solo, mas também do subsolo (art. 1º, caput). O projeto da comissão foi mais modesto, pois remetia a questão a uma legislação específica, a qual deveria compreender algumas medidas tendentes à garantia da igualdade de direitos, “sem prejuízo dos seus usos e costumes específicos” e do apoio social e econômico aos índios (art. 381), mas referendava os termos propostos no projeto dos índios. Como dado negativo, o projeto continha também a autorização para a previsão de exploração de minérios, sem falar em qualquer tipo de autorização, mas com garantia de contraprestação em favor das comunidades (art 382). Cf. CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 177-179.
[33] O regimento previu a criação de oito comissões específicas, com três subcomissões cada uma, totalizando 24 subcomissões. Instalada a Constituinte em fevereiro de 1987, as comissões temáticas realizaram os seus trabalhos até 15 de junho de 1987, quando os seus projetos foram encaminhados à comissão de sistematização, que ficaria responsável pela unificação e organização dos capítulos, transformando-os em um projeto único de Constituição.
[34] As principais discussões referentes à temática indígena deram-se na subcomissão de negros, populações indígenas, pessoas deficientes e minorias, mas houve também debates relacionados ao reconhecimento dos povos indígenas enquanto “nações” e ao caráter “multinacional” do estado brasileiro na subcomissão de nacionalidade, da soberania e das relações internacionais (pertencente à comissão da soberania e dos direitos e garantias do homem e da mulher) e discussões na subcomissão de educação, cultura e esportes (pertencente à comissão da família).
[35] Cf. BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. VII – Comissão da Ordem Social. VII-c Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. Anteprojeto e Relatório. Vol. 196. Brasília, Senado Federal, p. 12. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-197.pdf> Acesso em 7 out. 2017.
[36] O parlamentar ganhou notoriedade na Assembleia pela defesa que fazia do regime militar. Nesse sentido, ver: Sérgio Montalvão; Cláudia Montalvão (s/d). Verbete “Nilson Gibson”. In: Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro, CPDOC/FGV. Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/jose-lourenco-morais-da-silva> Acesso em 7 out. 2017.
[37] Cf. BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. VII – Comissão da Ordem Social. VII-c Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. Emendas ao Anteprojeto do Relator da Subcomissão. Vol. 197. Brasília, Senado Federal, p. 39. Disponível em < http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-197.pdf> Acesso em 7 out. 2017.
[38] Cf. BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. VII – Comissão da Ordem Social. VII-c Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. Anteprojeto. Vol. 200. Brasília, Senado Federal. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-200.pdf> Acesso em 7 out. 2017.
[39] O Senador Odacir Soares, por exemplo, questionou a previsão de nulidade de títulos, por “provocar total insegurança para qualquer proprietário, pois não se sabe quais as terras ocupadas pelos índios, sendo certo que, em princípio, pelo menos um dia no passado, essas terras foram por eles ocupadas”. Outra proposta de emenda, do constituinte Nilson Gibson, que ressalvava a possibilidade do direito de livre navegação para os não índios. Havia também emendas em sentido oposto, como a que propunha a vedação de qualquer atividade de exploração mineral nas terras ocupadas pelos índios, do deputado Haroldo Lima. Cf. BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. VII – Comissão da Ordem Social. VII-c Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. Emendas oferecidas à VII – Comissão da Ordem Social. Vol. 182. Brasília, Senado Federal. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/o-processo-constituinte/vol-182_parte1>. Acesso em 7 out. 2017.
[40] O deputado opunha-se abertamente ao que ele chamava de “salvar o país da insanidade dos radicais de esquerda”. Joaquim Justino Santos; Marcelo Costa (s/d). Verbete “José Lourenço Morais da Silva”. In: Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro, CPDOC/FGV. Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/jose-lourenco-morais-da-silva> Acesso em 7 out. 2017. Em sua justificava, o parlamentar alegava a potencialidade de conflitos em caso de expansão de áreas indígenas sobre núcleos populacionais urbanos e assentamentos rurais.
[41] Art. 101 – As terras ocupadas pelos índios são destinadas à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas naturais do solo e do subsolo, das utilidades nelas existentes e dos cursos fluviais, ressalvado o direito de navegação. § 1º – São terras ocupadas pelos índios as por eles habitadas, as utilizadas para suas atividades produtivas, e as áreas necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, incluídas as necessárias à preservação do meio ambiente e do seu patrimônio cultural.§ 2º – As terras ocupadas pelos índios são bens da União, inalienáveis, imprescritíveis e indisponíveis a qualquer título, vedada outra destinação que não seja a posse e usufruto dos próprios índios, cabendo à União demarcá-las. § 3º – Fica vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo nos casos de epidemia, catástrofe da natureza e outros similares, ficando garantido seu retorno às terras quando o risco estiver eliminado. Fica proibida, sob qualquer pretexto, a destinação para qualquer outro fim das terras temporariamente desocupadas.
[42] Estas informações constam da Memória nº 038/1ª SC/87, documento reservado do Conselho de Segurança Nacional, cujo acesso é disponibilizado a pesquisadores pelo Arquivo Nacional. O acesso a esses documentos permitiu ao pesquisador Pádua Fernandes não só descrevê-los, mas também traçar um perfil da atuação do órgão na defesa da restrição de direitos indígenas. Cf. FERNANDES, Pádua. Povos indígenas, segurança nacional e a Assembleia Nacional Constituinte: as Forças Armadas e o capítulo dos índios da Constituição brasileira de 1988. Revista InSURgência, Brasília, ano 1, v.1, n. 2, 2015, p. 142-175.
[43] O Estado de São Paulo. “A conspiração contra o Brasil”. p. 1. 09/08/1987.
[44] Em vez de opor-se diretamente às demandas indígenas, a matéria atacava entidades que atuavam em defesa dos direitos territoriais indígenas, como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que serviam, segundo o jornal, de “testa de ferro” a interesses estrangeiros, ameaçando a soberania nacional. Nesta ofensiva, o Congresso chegou a instalar uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, cuja vida foi efêmera, mas serviu como meio de pressão e instrumento para contestação à amplitude do reconhecimento dos direitos indígenas. O relatório da CPMI sequer chegou a ser votado, por falta de quórum, e no final do ano de 1987 a comissão já havia se encerrado. Cf. SANTILLI, Marcio. A CPMI que evaporou nos idos da Constituinte. Instituto Socioambiental. Disponível em: <https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-isa-blog-do-ppds/a-cpmi-que-evaporou-nos-idos-da-constituinte> Acesso em 08 out. 2017.
[45] Cf. BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Comissão de Sistematização. Projeto de Constituição. Primeiro substitutivo do relator. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-235.pdf> Acesso em 08 out. 2017.
[46] Como observa Daniel Pinheiro Viegas, essa proposta retirava o direito de grande parte dos povos indígenas, principalmente do Nordeste, que foram obrigados a deixar suas terras em razão das expedições de “descimento”, além das expedições punitivas, das doenças contagiosas e do avanço sobre as terras indígenas. VIEGAS, Daniel Pinheiro. A tradicionalidade da ocupação indígena e a Constituição de 1988: A territorialização como instituto jurídico-constitucional. Manaus, UEA Edições, 2017, p. 119.
[47] BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Comissão de Sistematização. Emendas Populares. Vol. 2. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-231.pdf> Acesso em 8 out. 2017.
[48] Discurso na Assembleia Constituinte, em 04/09/1987. COHN, Sérgio (org.). Ailton Krenak. Série Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2015, p. 34-35.
[49] O tema foi regulado nos arts. 302 a 305 do projeto. Cf. BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Comissão de Sistematização. Projeto de Constituição. Primeiro substitutivo do relator. Vol. 235. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-235.pdf> Acesso em 8 out. 2017.
[50] O tema foi regulado nos artigos 261 a 264 do projeto. Cf. BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Comissão de Sistematização. Projeto de Constituição. Segundo substutivo do relator. Vol. 242. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-242.pdf> Acesso em 8 out. 2017.
[51] O Projeto “A” da Constituição continha basicamente as mesmas previsões: “Art. 268 – São reconhecidos aos índios seus direitos originários sobre as terras de posse imemorial onde se acham permanentemente localizados, sua organização social, seus usos, costumes, línguas, crenças e tradições, competindo à União a proteção desses bens. (…) Art. 269 – As terras de posse imemorial dos índios são destinadas à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas naturais do solo, dos recursos fluviais e de todas as utilidades nelas existentes. § 1º – São terras de posse imemorial onde se acham permanentemente localizados os índios, aquelas destinadas à sua habitação efetiva, às suas atividades produtivas e as necessárias à sua conservação cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Art. 271 – Os direitos previstos neste capítulo não se aplicam aos índios com elevado estágio de aculturação, que mantenham uma convivência constante com a sociedade nacional e que não habitem terras indígenas.” (sem grifos no original) Cf. BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Projeto de Constituição “A”. Da comissão de Sistematização. Vol. 251. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-251.pdf> Acesso em 8 out.2017.
[52] Sobre a atuação do movimento indígena na Constituinte, veja-se: LOPES, Danielle Bastos. O movimento indígena na Assembléia Nacional Constituinte (1984-1988). Dissertação (Mestrado em História Social). 2011. 184 f. - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Formação de Professores, 2011.
[53] A criação do centrão foi estimulada pelo governo Sarney, insatisfeito com a previsão do projeto de reduzir seu mandato para quatro anos e da chamada “cláusula parlamentarista”. Eles defendiam pautas como a contestação à limitação do direito de propriedade e de canais de democracia participativa. Sobre o tema, ver: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 167.
[54] O “centrão” conseguiu mudar o regimento da Constituinte e derrubar as decisões das comissões de sistematização, garantindo a discussão sobre novas propostas de projeto da Constituição, que deveriam ser chanceladas previamente pela maioria absoluta. PILATTI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988: Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 195.
[55] No caso da reforma agrária, a principal discordância referia-se à desapropriação de propriedades produtivas., Fernando Henrique Cardoso, que era constituinte à época, declarou, em entrevista a Luiz Maklouf Carvalho: “O que complicou todo o processo – e gerou o Centrão – foi a radicalização da questão da reforma agrária e da função social da propriedade. (...) Aquilo desandou, porque não se fez um entendimento razoável. No resto não desandou: quase quebra, mas não quebra, quase quebra, mas não quebra. Mas ali quebrou. Foi ali que uniu o Centrão” (sem grifos no original). CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988: Segredos da constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2017, p. 125.
[56] Segundo Bernardo Cabral, colocar a expressão “na forma da lei” era o único caminho possível em caso de impossibilidade de acordo. Cf. Ibid, p. 102.
[57] Ailton Krenak assim relatou: “Eles estavam organizados numa frente chamada UDR, União Democrática Ruralista, que era uma coisa bem fascista mesmo. Eles saíam publicamemnte fazendo linchamentos. Era uma coisa meio Ku Klux Klan, era perigoso, eles mandavam matar sem medo. A UDR se articulou politicamente em torno do 'centrão', que era uma convergência de partidos de direita que não tinham vergonha de ser de direita. Eram fazendeiros do Rio Grande do Sul, do Paraná, do Mato Grosso, que realmente barbarizavam, sem esconder nada. Chegavam a ameaçar pessoas publicamente nos meios de comunciação. Foi pouco depois disso que o Chico Mendes foi assassinado. Os fazendeiros não tinham medo não, eles matavam qualquer um sem despistar”. Cf. COHN, Sérgio (org.). Ailton Krenak. Série Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2015, p. 223.
[58] Cf. Conselho Indigenista Missionário - CIMI. Outros 500: construindo uma nova história. São Paulo: Editora Salesiana, 2001, p. 123.
[59] Cf. Centro Ecumênico de Documentação e Informação - CEDI. Povos Indígenas no Brasil 1987/88/89/90. São Paulo: CEDI, 1991, p. 27.
[60] Art. 231, São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. § 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. § 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. § 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
[61] BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Comissão de Sistematização. Projeto “A”. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-251.pdf> Acesso em 10 out. 2017.
[62] Para continuarem sendo o que são, devem deixar de ser o que eram. Em muitas situações, a adoção de certos traços e práticas externas não representam, assim, uma abdicação da identidade, mas sim uma forma de negociação para garantir a sua perpetuação, de maneira a torná-la mais compatível com o que propõe a sociedade dominante. Sobre o tema, veja-se: BARTOLOMÉ, Miguel Alberto. Processos Interculturales: antropología política del pluralismo cultural em América Latina. México: Siglo XXI Editores, 2006, p. 103-104.
[63] SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO; Daniel. Direito Constitucional. Teoria, história e métodos de trabalho. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 171-172.
[64] SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Comentário ao art. 231. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W. (Coords). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 2150.
[65] Convergindo com esse pensamento, Boaventura de Sousa Santos põe em evidência as epistemologias do sul, com apelo aos novos processos de produção e de valoração de conhecimentos válidos, científicos e não científicos, e de novas relações entre diferentes tipos de conhecimento, a partir das práticas das classes e grupos sociais que sofreram de maneira sistemática as desigualdades injustas e as discriminações causadas pelo capitalismo e pelo colonialismo. Um “Sul” simbólico dos oprimidos, não geográfico, que consiste em uma metáfora do sofrimento humano causado pelo capitalismo e pelo colonialismo em nível global e também da resistência para superá-lo ou minimizá-lo, com uma compreensão mais ampla de mundo que a ocidental, que leve em consideração a diversidade infinita dos modos distintos de ser, pensar e sentir, de conceber o tempo, a relação entre seres humanos e entre humanos e não humanos, de olhar para o passado e o futuro, de organizar coletivamente a vida, a produção de bens e serviços e o ócio. Constitui, assim, não uma alternativa, mas um pensamento alternativo de alternativas, com ênfase na desmonumentalização do conhecimento e em uma sociologia que não seja de ausências, mas de emergências. Os dois fundamentos centrais das epistemologias do sul são a ecologia de saberes e a tradução intercultural. A ecologia de saberes decorre da diversidade epistemológica e pressupõe múltiplas concepções de ser e estar no mundo. Já a tradução intercultural vincula-se a um procedimento que permita criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo, tanto as disponíveis como as possíveis. SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologías del Sur. Revista Utopía y Praxis Latinoamericana, Año 16, n. 54, jul/set, 2011, p. 17/39.
[66] Remete-se aqui ao conceito elaborado por Will Kymlicka. Segundo o autor canadense, as proteções externas consistem em mecanismos para assegurar os direitos de um determinado grupo em face da sociedade hegemônica, notadamente contra decisões externas. Um exemplo clássico é a demanda por terras, mas podem ser citados direitos próprios de saúde, poderes de autogoverno e direitos de representação. Tais proteções seriam consistentes com a democracia liberal, por promoverem a igualdade entre grupos e não permitirem a opressão de um sobre o outro. Além disso, não entram em conflito com direitos individuais, diferentemente das chamadas “restrições internas”, pela exigência de respeito aos indivíduos que se situam em determinado grupo e que não podem ser oprimidos por decisões internas – o que geraria uma dupla opressão (minorias dentro de minorias). Veja-se: KYMLICKA, Will. Multicultural citizenship. Oxford: Clarendon Press, 1995.
[67] A desobediência consiste em um agir, proposto por Catherine Walsh, que à episteme hegemônica se contrapõem não apenas uma episteme alternativa, mas várias e novas epistemes. brechas ou fissuras na colonialidade do poder, visualizadas, fomentadas e construídas nos âmbitos, instituições, estruturas da razão e do poder moderno/colonial, que seguem crescendo cotidianamente e costumam passar despercebidas, sem serem vistas ou escutadas. Este é um processo de luta que não ocorre contra, mas para a possibilidade de um modo-outro de vida, e deve vir de baixo para cima, das margens e das fronteiras, das pessoas, das comunidades, dos movimentos, dos coletivos que desafiam, interrompem e transgridem as matrizes do poder colonial em suas práticas de ser, atuação, existência, criação e pensamento. Assim, as brechas “se transformam no lugar e no espaço a partir do qual a ação, militância, resistência, insurgência e transgressão são impulsionadas, onde as alianças se constroem, e surge um modo-outro que se inventa, cria e constrói”. Cf. WALSH, Catherine. Notas pedagógicas a partir das brechas decoloniais. In: CANDAU, Vera Maria (org.). Interculturalizar, descolonizar, democratizar: uma educação “outra”?. Rio de Janeiro: 7 letras, 2016, p. 72.
[68] OLIVEIRA, João Pacheco de. Sem a tutela, uma nova moldura de nação. In: ______. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2016, p. 312-313.